Decisões políticas sempre tiveram impacto tecnológico. Avanços fundamentais, como energia atômica, internet e comunicação por satélite não ocorreram por acaso – foram resultado de decisões políticas deliberadas. Há uma delicada interdependência entre governos, regulamentação e tecnologias de comunicação. Exemplos incluem a fragmentação forçada do sistema Bell nos EUA, a quebra de monopólio e leilões de telefonia no Brasil, o papel da DARPA na internet e do CERN no WWW. Gestores bem-informados estão acompanhando cuidadosamente os recentes eventos de barreiras tarifárias e seus desdobramentos na tecnologia.
Um exemplo é DMA, que não é muito conhecido, mas que pode ter profundo impacto. Nos últimos anos, a mensageria transformou a sociedade. Mais de um terço da população do planeta usa mensageria digital para consumo de bens, informação e serviços. Muitas sociedades (inclusive o Brasil) transicionaram diretamente da comunicação analógica restrita para mensageria digital sofisticada.
A regulamentação desse setor ainda está em fluxo. Em maio de 2023, entraram em vigor as exigências do Digital Markets Act aprovadas pela União Europeia, em novembro de 2022. Essa ampla legislação cobre várias áreas de atuação de empresas de tecnologia. Embora DMA abranja várias práticas, ele pode afetar mensageria profundamente. Vinte e dois serviços em seis companhias (gatekeepers) foram identificados por sua posição dominante no mercado e sujeitos a restrições em coleta de dados, pré-instalação de aplicativos, autorreferência e obrigações de interoperabilidade, portabilidade e acesso a dados: Alphabet, Amazon, Apple, ByteDance, Meta e Microsoft. O site da comunidade europeia também menciona Booking.com. Os serviços regulados pelo DMA incluem Google Search, Google Maps, Google Play, Google Shopping, Google Ads, Chrome, Android, YouTube, Amazon Marketplace, Amazon Advertising, Apple Store, Safari, IOS, iPadOS, TikTok, Facebook, Instagram, FB Marketplace, FB Messenger, Meta Ads, WhatsApp, Linkedin e Windows.
Impacto das mudanças
As empresas afetadas reagiram de formas diferentes, mas de modo geral, implementam as demandas da regulamentação. O Meta tem provido detalhada documentação sobre as modificações que está adotando para se adequar às exigências (nesse link). Devido ao DMA, os usuários europeus do WhatsApp e do Facebook Messenger terão a opção de se conectar com usuários de outros canais. As especificações técnicas garantindo conectividade segura e privada foram publicadas em março de 2024 (nesse link). Na Europa, o WhatsApp informa a existência de chats em outros canais na tela de configurações, toda vez que um novo canal é disponibilizado. Também é possível configurar se mensagens serão agrupadas por usuário (mixando múltiplos canais) ou separadas (cada canal com uma janela separada para cada usuário). A lei DMA determina apenas integração básica, mas algumas empresas implementaram outras funcionalidades como reações, cotação de resposta, indicação de leitura e de digitação. Em 2027, serão disponibilizados grupos e chamadas por voz e vídeo.
Ainda é cedo para avaliar o impacto dessas mudanças. Mas elas afetam uma característica básica de mensageria: até agora, usuários de um canal estavam restritos a se comunicarem apenas com outros usuários do mesmo canal. O DMA muda a premissa básica que cada comunidade era privativa de uma empresa diferente. Pode ser que o impacto seja limitado, ou pode ser que seja um divisor de águas, criando uma comunidade global, independente do proprietário do canal.
Atualmente, O DMA é aplicável apenas aos países da comunidade europeia, mas a professora Anu Bradford, da escola de direito da Columbia, cunhou o termo “Efeito Bruxelas” para exemplificar sua influência no restante do planeta. O Japão propôs uma versão limitada do DMA, focada em motores de busca e lojas de aplicativo. Na Inglaterra, a lei Digital Markets, Competition and Consumer foi aprovada em maio de 2024 autorizando que uma autarquia (Competition Markets Authority) imponha obrigações para evitar dominância. Na Índia, o Digital Competition Act, baseado no DMA, está sob debate. A Coreia do Sul introduziu uma proposta baseado no DMA denominada Plataform Competition Promotion Act, que foi recentemente abandonada em favor de modificações nas leis antitruste atuais. Ao invés de nova legislação, a Comissão Federal de Competição Econômica emitiu relatório focado em práticas competitivas de e-commerce. A Turquia publicou, em outubro de 2022, uma proposta de revisão ao Turkish Competition Act incorporando vários princípios do DMA, que está atualmente em estágio de coleta de comentários.
No Brasil, o projeto de lei 2768 de 2022 dispõe sobre a organização, o funcionamento e a operação das plataformas digitais que oferecem serviços ao público, e contém muitas das provisões do DMA. O projeto aguarda apreciação pelas comissões do congresso.
O tópico envolve múltiplas agendas e posições políticas, e impacta grandes interesses econômicos. Há argumentos convincentes pró e contra ambos os lados. Com o recrudescimento de protecionismo e tensões tarifárias entre jogadores poderosos, essas regulamentações e barreiras não tarifárias se tornarão ainda mais relevantes, e devem ser acompanhadas de perto pelos tomadores de decisões tecnológicas.
Álvaro Garcia, CEO da Robbu.
Fonte: TI INSIDE Online - Leia mais