Em maio (domingo, 18), o programa Fantástico, da TV Globo, noticiou com entusiasmo um exame inovador que promete revolucionar o diagnóstico do autismo de forma precoce, em bebês. A tecnologia foi aprovada nos Estados Unidos e desenvolvida com participação de um neurocientista brasileiro, sendo capaz de identificar sinais do transtorno em 15 minutos.
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A tecnologia faz uso do rastreamento ocular (eye tracking) dos bebês enquanto assistem a vídeos. O neurocientista brasileiro que faz parte do projeto se chama Ami Klin, e é também diretor do principal centro de tratamento de autismo americano, localizado em Atlanta.
O exame pode ser realizado em crianças entre um ano e quatro meses e dois anos e meio e propõe que elas assistam a 14 vídeos curtos em uma tela, enquanto câmeras ocultas registram a movimentação dos seus globos oculares. Ao Fantástico, Klin explicou que as crianças neurotípicas (aquelas fora do espectro autista) prestam atenção nas expressões emocionais e as com autismo observam os objetos, como o movimento porta do carrinho.
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Os dados captados pelo rastreamento ocular são analisados em tempo real pelo sistema que identifica padrões de atenção típicos e atípicos. O resultado sai em apenas 15 minutos.
Aprovada pelo órgão regulador americano em agosto de 2023, a tecnologia já está em uso em 47 centros especializados nos Estados Unidos, avaliando uma média de cerca de 5.800 crianças por ano. Fazendo valer os benefícios de uma aplicação remota, duas vans foram transformadas em clínicas móveis, levando o exame a regiões mais distantes das clínicas.
O equipamento completo custa cerca de US$ 7 mil nos EUA, e cada exame custa US$ 225.
Diagnóstico de TEA
Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, um diagnóstico feito de maneira tradicional pode levar de dois a três anos – postergando o início de terapias que podem melhorar a qualidade de vida de crianças diagnosticadas com transtorno do espectro autista (TEA).
“Quando o diagnóstico vem tarde, o que se trata são as consequências do autismo sem intervenção, como atrasos na linguagem e no desenvolvimento intelectual”, disse Klin.
Até o momento, não há um único exame específico para detectar o TEA e o diagnóstico clínico é baseado na observação do comportamento do paciente e de entrevistas com os pais.
Alguns instrumentos de rastreio são utilizados, mas não são responsáveis pelo diagnóstico isoladamente. Geralmente, esse diagnóstico é feito por uma equipe multidisciplinar incluindo médicos como neurologistas e psiquiatras e também psicólogos.
Substitui a avaliação clínica?
O Canaltech conversou com Graccielle Asevedo, médica do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp). A especialista vê como bem-vindos os avanços de tecnologias mais objetivas que possam apoiar o diagnóstico do autismo e fazê-lo com mais rapidez e faz uma avaliação importante.
“O estudo publicado em 2023, que serviu de base para a reportagem, apresenta evidências robustas de que medidas automatizadas de engajamento visual social (como bebês e crianças pequenas olham para interações sociais) podem distinguir com boa sensibilidade e especificidade crianças com e sem autismo entre 16 e 30 meses. Mas, é importante ressaltar que esse método não é um substituto do diagnóstico clínico tradicional”, pondera.
A especialista fez sinalizações para as famílias brasileiras interessadas nesses avanços.
“O rastreamento ocular é uma ferramenta complementar com potencial para ampliar o acesso e reduzir o tempo de espera por avaliações. A qualidade do estudo é excelente, mas ainda assim precisa passar por testes de implementação em larga escala e em contextos clínicos variados, com outras populações, em culturas diferentes [como no Brasil]”, explica.
“O método foi validado em ambientes altamente controlados, com especialistas experientes e dispositivos específicos, ele precisa ser testado em múltiplos contextos clínicos, com diferentes populações e condições de uso antes de pensar em sua aplicação como rotina”, completou.
Apesar da ressalva, outro ponto positivo sinalizado por Asevedo como uma evolução é o fato de poder contar com um instrumento objetivo, rápido e replicável para auxiliar no diagnóstico precoce. Especialmente pensando na escassez de profissionais especializados.
“A possibilidade de usar uma avaliação de menos de 15 minutos, com base em vídeos e sem necessidade desses recursos humanos tão especializados e escassos representa um salto na capacidade de triagem precoce”, considerou.
Estudos nacionais e testes em adultos
De acordo com Asevedo, o método de rastreamento visual de cenas sociais em bebês com suspeita de autismo ainda está em fase de validação internacional e não há, até o momento, uma diretriz oficial que reconheça sua aplicação como diagnóstico definitivo no Brasil.
“Ainda precisamos de estudos nacionais para avaliar se o protocolo feito nos Estados Unidos terá as mesmas propriedades em populações brasileiras. Na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), nosso grupo de trabalho está solicitando verba num edital recente da Fapesp em colaboração com o Instituo Jô Clemente para investigar o uso do rastreamento ocular como ferramenta auxiliar para o diagnóstico de autismo na vida adulta — uma população ainda mais invisível nas políticas públicas e nos estudos científicos”, conta.
O projeto envolve 300 adultos com suspeita de TEA e utiliza tecnologia de rastreamento ocular para identificar os padrões objetivos de atenção visual diante das cenas sociais.
Detecção precoce e intervenção
O Canaltech também ouviu a conselheira da diretoria do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Izabel Hazin. A psicóloga, especialista em neuropsicologia e doutora em psicologia cognitiva explica que crianças com TEA apresentam alterações no desenvolvimento entre os doze e os 24 meses, embora alguns indícios possam ser identificados pouco antes disso.
É senso comum que a detecção precoce do autismo amplia significativamente as oportunidades de intervenção nas fases iniciais do desenvolvimento infantil e permite o fortalecimento de repertórios importantes, como o desenvolvimento de habilidades como a linguagem verbal e a atenção compartilhada, além da autonomia e de competências sociais.
Contudo, Hazin pontua que não se trata de uma tarefa simples. “A heterogeneidade do TEA se configura como grande obstáculo para que possamos alcançar um método universal de triagem e diagnóstico que sozinho permita realizar o diagnóstico com segurança”, disse.
Biomarcadores no TEA
A especialista ressalta que estudos recentes apontam na direção do uso de biomarcadores, como o rastreamento do olhar, para auxiliar no diagnóstico. Entretanto, é importante que qualquer das metodologias utilizadas respeitem o que chamou de “variabilidade das infâncias”, considerando as regiões em que vivem as crianças e as complexidades de variáveis que caracterizam a sociedade e atravessam as formas de expressão do autismo.
“Estudos envolvendo eye tracking (rastreamento ocular) para diagnóstico de TEA já são realizados em muitos países, inclusive no Brasil. Mas, de uma forma geral, o que os estudos apontam é que ainda não há um conjunto de dados robusto que possibilite diagnosticar só com base no processamento visual”, pondera Hazin, sobre o exame.
“O trabalho de uma equipe multiprofissional, composta por especialistas de diferentes áreas do conhecimento, associado a diferentes biomarcadores, dentre os quais o rastreamento ocular pode ser um deles, ainda é a metodologia mais eficiente [para diagnóstico]”, concluiu.
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Fonte: Canaltech - Leia mais