Como especialista em gamificação e CEO do Qranio, tenho dedicado minha carreira a criar tecnologias que engajam pessoas em processos de aprendizagem e desenvolvimento. Através de nossa plataforma LMS/LXP, utilizamos elementos de jogos para motivar, ensinar e transformar positivamente a vida das pessoas.
Porém, hoje preciso falar sobre o outro lado dessa moeda: como os mesmos mecanismos que utilizo para educar estão sendo distorcidos para criar dependência e explorar financeiramente milhões de brasileiros através das apostas online e do famoso “jogo do tigrinho”.
Os mecanismos por trás da cortina
“Com o avanço da Inteligência Artificial, a gamificação vem sendo adotada como uma estratégia eficaz para impulsionar o engajamento, transformando tarefas cotidianas em experiências interativas e motivadoras.” Escrevi isso recentemente sobre gamificação corporativa. Mas o que acontece quando essa mesma tecnologia é usada não para desenvolver, mas para explorar?
Como alguém que trabalha diariamente com gamificação, posso explicar exatamente como essas plataformas são projetadas:
Sistemas de recompensa intermitente: O mesmo mecanismo que uso para manter alunos engajados em cursos é distorcido nas apostas para criar dependência. Pequenas vitórias aleatórias mantêm o cérebro em constante estado de expectativa.
Feedback imediato e dopamina: Nas plataformas educacionais, usamos feedback instantâneo para reforçar o aprendizado. Nas apostas, esse mesmo mecanismo é explorado para criar ciclos viciantes de dopamina.
Progressão e “quase vitórias”: Desenvolvemos sistemas de progressão para motivar o aprendizado contínuo. O tigrinho distorce isso mostrando frequentemente combinações que “quase” deram certo, criando a falsa impressão de que a vitória está próxima.
Personalização algorítmica: Enquanto usamos IA para personalizar experiências educacionais, as plataformas de apostas usam algoritmos para identificar padrões de comportamento e maximizar o tempo e dinheiro gastos.
A diferença entre gamificação construtiva e exploradora
Em meu trabalho com educação corporativa, vejo diariamente o poder da gamificação para transformar vidas positivamente. Segundo uma pesquisa da TalentLMS, 83% dos funcionários se sentem mais motivados ao participar de treinamentos que utilizam gamificação, enquanto 89% afirmam que essa metodologia tem um impacto positivo em sua produtividade.
A diferença fundamental está no propósito: enquanto a gamificação educacional visa o desenvolvimento humano, as apostas online visam exclusivamente a extração de valor financeiro.
Enquanto o mercado de gamificação cresce de forma saudável (de US$9,1 bilhões em 2020 para US$30,7 bilhões até 2025), as apostas online drenam R$ 20 bilhões POR MÊS da economia brasileira, segundo o Banco Central. São recursos que poderiam estar sendo investidos em educação, saúde e desenvolvimento.
Os números que ninguém mostra
Enquanto você vê influenciadores nas redes sociais mostrando ganhos de milhares de reais em apostas, a realidade por trás das câmeras é bem diferente:
75 milhões de brasileiros estão com nome sujo, segundo dados da Serasa de março de 2025
58% dos apostadores têm dívidas em atraso há mais de 90 dias
Nas famílias mais pobres, o gasto com apostas já representa 5% do que é destinado à alimentação.
Como desenvolvedor de tecnologia, posso afirmar: a matemática não mente. O jogo é programado para que a casa sempre ganhe no final. Não existe estratégia que funcione a longo prazo. Não existe “hora certa” para jogar. Não existe “sequência de apostas” que garanta vitória. É tudo programado para você perder.
Histórias reais: quando o jogo vira pesadelo
Janaína, confeiteira de 35 anos, perdeu R$ 1.400 em poucas horas jogando tigrinho. Era o dinheiro do aluguel da família. “Ainda não me sinto bem. É como se faltasse um pedaço de mim”, conta ela, que hoje administra um grupo de apoio para jogadores compulsivos.
Já Emanuela, de 25 anos, chegou ao ponto de quebrar o próprio celular para parar de jogar. “Tive abstinência, com dores de cabeça, calafrio e enjoo. Chegou em um momento que pensei em fazer besteira porque eu me vi de fato desesperada”, conta a jovem, que hoje faz tratamento com um psiquiatra.
Como as plataformas exploram sua vulnerabilidade
Como especialista em design de plataformas digitais, posso afirmar que as empresas de apostas sabem exatamente o que estão fazendo. Elas usam técnicas avançadas para manter você jogando:
Bônus de boas-vindas que parecem vantajosos, mas têm regras complicadas.
Pequenas vitórias programadas para te dar a falsa sensação de que está no lucro.
Notificações constantes para te chamar de volta ao jogo.
Influenciadores famosos que só mostram quando ganham, nunca quando perdem.
Acesso 24 horas por dia, direto no seu celular.
Como explica a Dra. Anna Lembke, psiquiatra da Universidade de Stanford: “As corporações que possuem e operam sites de jogos de azar online intencionalmente minam os esforços dos jogadores viciados para se recuperarem. Elas bombardeiam pessoas vulneráveis com centenas de mensagens promocionais, que por si só servem como gatilho para recaídas.
A verdadeira aposta que vale a pena
“É preciso sempre aliar a tecnologia ao lado humano, porque com isso, todos saem ganhando.” Esta é minha filosofia no desenvolvimento de software educacional. Infelizmente, as plataformas de apostas seguem o caminho oposto: usam tecnologia para explorar vulnerabilidades humanas.
Quando meu pai me dizia “Duvidar sempre, apostar nunca”, ele não conhecia os smartphones nem as bets. Mas sua sabedoria atravessa gerações. Como desenvolvedor de tecnologia, posso afirmar com propriedade técnica: o jogo do tigrinho não foi feito para você ganhar. Foi projetado, algoritmo por algoritmo, para você perder, e perder muito.
Como desenvolvedor de tecnologia educacional e especialista em gamificação, considero minha responsabilidade compartilhar este conhecimento. A mesma tecnologia que pode viciar também pode educar e transformar vidas positivamente. A escolha de como usá-la está em nossas mãos.
Samir Iásbeck, CEO e Fundador do Qranio.
Fonte: TI INSIDE Online - Leia mais